quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Coelho

Chegou tarde do trabalho, mas, quebrando a rotina, o porteiro lhe falou de um pacote que acabara de chegar. Pacote estranho. Abriu e encontrou quatro patas de coelho, recobertas de uma penugem branca e macia, como quatro amuletos. Não acreditava nessas coisas, e guardou as patas na mesa da sala. Pela manhã, as patinhas remexiam-se inquietas pela casa, como que na vontade de aprender logo a pular. Chegara outro pacote. Desta vez, lá dentro, jazia o tronco palpitante de um coelho fofo e também branco. O corpo rolou languidamente pelo chão até se encaixar às patas, e daí foi pura alegria para o semicoelho, que pulava incansavelmente pela casa, erguia-se nas patas traseiras, procurando carinho, e ia farejar as paredes. Ainda não fazia cocô de bolinhas. Dias depois, chegou a cabeça, que foi recebida pelo animal quase completo, ainda sem orelhas, mas que agora podia farejar plenamente e sentir o cheiro do vento, fazendo-lhe cócegas nos bigodes espetados. O "dono", sem saber como reagir, apenas olhava o animal; vez ou outra lembrava que o dente desses bichos cresce conforme vão roendo as coisas. Deu-lhe cenouras e alfaces verdes e fresquinhas. Dois dias úteis após (pois é o tempo necessário para que cheguem encomendas), chegaram as duas orelhas. Altas, empinadas, saudáveis e limpas, foram recebidas com regozijo pelo animal, que pulou alegre e engordou comendo vegetais. Agora já fazia muito cocô de bolinhas, rolava pelo chão e recebia carinho do dono; quem quer que o enviara sabia que o homem precisava se completar no animal.

Mas eram tempos difíceis, o dinheiro pouco e muito trabalho, e o coelho estava gordo e apetitoso. Poderia economizar com comida e comer o coelho inteiro, porque o animal tinha vísceras, músculos e ossos, mas não tinha coração. Sendo assim, não era um bicho legítimo. Poderia inclusive comer as coxas agora, e guardar o peito para o dia seguinte, depois faria sopa com as vísceras, beberia o sangue, enfeitaria o chão com a pelagem, aproveitaria todo o coelho. Assim o fez. Abriu o animal e, aliviado, não viu o coração; guardou o sangue, pelou, conservou as tripas, limpou os músculos, temperou, cozeu, comeu, estava uma delícia, melhor que frango. Com o passar do tempo, não sobrou mais coelho, o homem comera tudo, até o sangue gelado e nutritivo havia bebido. Voltou a trabalhar mais, para gastar dinheiro com comidas.

Dois dias úteis depois, recebeu um pacote estranho, abriu-o e largou-o de imediato: chegara o coração.

2 comentários:

pit disse...

adoro os seus textos, flávio.

esse deixa um nó na garganta do meio para o fim que chega a doer.
muito bom, mesmo.



e cadê a marina?

Flávio A disse...

valeu, pit =D

já pedi pra marina vir aqui ums duas vezes, mas necas. quando ela terminar o freelance, ela vem (eu acho).

\o/