terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Para lá

- Para lá onde? - dizia ele. - Pois, não quero marchar para lá, o caminho me parece muito escuro e demasiado amplo. Diria que terrível.
- Ora, não sejas tolo. Que menino bobo, sem ambições. Pensas que a vida se resume a isto? Vou te dizer: não se resume. Estás absorto em pensamento magnifífico e idílico, porém, de todo vão. - declarou a menina sábia de cabelos longos.
Fitaram-se por um instante que pareceu longo, muito longo. Ele, com olhos suplicantes e assustados, respirava com dificuldade. Ela mantinha o ar inquebrantável de quem já atravessou montanhas. Contudo, sabia: o gesto nem sempre corresponde ao movimento. Seu pai já o ensinara, várias vezes, aliás. Tanto é assim, que ardia por dentro, os músculos contraíam-se, e a pele, arrepiada, lhe oferecia sensação de insuportável frio, como se todo o corpo se unisse contrário aos comandos da mente.
- Incorres em erro. Sabes disso, não sabes?
- Não o faço. Isso é o que pensas, mas, em breve, entenderás.
Dito isto, deu-lhe as costas e prosseguiu em sua direção correspondente.
O quarto, de humildes dimensões, já não apresentava o menor vestígio da organização de outros tempos. Há muito havia perdido a noção de ordem, sequer acreditava que esta de fato existisse. O próprio rosto o denunciava: olheiras, óculos sujos, barba por fazer. “Fazer o que é necessário”. Ora essa, o que será esse tal necessário? Não entendia bem, ou melhor, entendia até bem demais a verdade absurda. Essa coisa toda, a pasta gosmenta fétida que une o tecido social e previne os movimentos, essa macro-ordem e suas micro-ordens. Às vezes, pensava como tudo poderia ter sido diferente...Entretanto, não teria aprendido a sofrer, e assim, a odiar, para então, poder sentir-se livre. Verdade que se tratava de uma liberdade só, sem cumplicidades e piedades. Além do que, à luz da realidade, não era uma liberdade de fato. Continuava acoplado e encapado, preso a determinadas habitualidades por questão de sobrevivência. A grande máquina era mesmo muito engenhosa, mas sabia que não era indestrutível. “Sou uma engrenagem”, dizia, “porém, uma engrenagem consciente.”
- Como está tudo?
- Bem, muito bem. - Apesar dessas palavras e da conversa telefônica, naturalmente fria e camuflada, sentiu que ela não sorria.
- E você, como está?
- Nem tão bem, nem tão mal. Como uma manhã de sábado chuvosa.
Já não se entendiam mais. Ela não suportava aquelas metáforas, a seu juízo, muito supérfluas e infantis, típicas de uma criança mimada que não conhece o mundo.
- Sabe quando se acorda de um jeito difícil de separar estrelas de oceanos?
- Não. - Entretanto, ela sabia.
Prosseguiram em suas frágeis vidas com seus putrescíveis corpos, oscilando entre a beleza e a miséria de se existir. Ela se casou com R. Borges Souza. Ele não se casou, mas definhou em câncer de pulmão. Contudo, sempre afirmava não se arrepender de ter fumado o quanto pôde.

3 comentários:

ana rita disse...

apesar de algumas frases meio clichê e um começo um pouco embolado. O texto caminha do meio pro fim numa leveza dura, numa poesia ácida e doce. Nossa, diria que o melhor que vi de ti até agora (e olha que páreo é duro)!

Morganna disse...

povo! feliz ano novo procês! :*

Anônimo disse...

recebi uma visita virtual de um sujeito chamado yuri, aqui de cacoração, e queria agradecer pela passagem e comentário.

aproveito pra desejar um 2008 muito bom para os tantos autores de cacoração. parabéns e muita sorte pro site neste ano!

abraços,

Sofia/Transitorio
hayalternativa.blogspot.com