quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Lucidez põe mesa? (mais uma dessas cartas)

Magnólia,
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Ontem, estávamos só mulheres. Eu, mãe, irmã e avó. Os homens tinham migrado para uma dessas reuniões exclusivas. Creio que foram coçar as barrigas. O que mais os homens fazem que tem de ser isolado? Coçar suas barrigas gordas, magras, peludas, insosas ou apetitosas. Em um recinto fechado, com outros homens de outros cantos, trocando as idéias mais sórdidas de como se coçar sem que elas percebam.
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Mas no fim esse inquietante hábito masculino não é o que me moveu a fazer esse relato. Como eu te disse, estávamos Vó, mãe, eu e irmã. Mãe pega e diz: Vamos fazer almoço igual eu comia na casa da sua bisa. Macarrão com muito queijo. Galinha caipira recheada. Pastel de carne com azeitona inteira. Arroz branco. Feijão novo. Salada. O último item é a intromissão moderna que mãe faz pra fingir que somos saudáveis.
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Gastamos a manhã fatiando, temperando, refogando, provando, dourando, fritando todos os pratos. Uma e meia. Essa era a hora que sua bisa servia o almoço no domingo. Ai, do menino que não viesse. Não comia, remenda minha vó. Arrumar a mesa. Forros, colheres, jogo americano, que naquele tempo devia ter outro nome, aparador, neta, aparador.
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Quatro mulheres se sentam à mesa ainda com as roupas cheirando a alho refogado e quem é que liga, Magnólia? Enquanto os homens secretamente coçam barrigas, nós, mulheres nos temperamos. Isso eu defino como o quê mais antropofágico da família, nos temperamos com o mesmo tempero de nossa galinha.
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Todas estão bem servidas, uma voraz tirandoopaidaforca, outra por partes bemburguesas, aquela com gosto derraparpanela, esta devagar comdentadura. Cada uma comendo. Chique isso de pastel com azeitona inteira. Faltou a farofa, sabia que tinha faltado uma coisa. Não sei o que você fez para o frango esbagaçar desse jeito. Pra mim tá bom.
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Estávamos lá, Magnólia, com toda a harmonia lúcida que cabia às famílias e principalmente as mulheres à mesa. Uma lucidez engraçada que se põe sempre morosa sobre a toalha. Aí, já nos finalmentes da história, irmã pega e diz: Vó põe os seus ossos aqui no prato. E vô pousa a mão levemente no braço e arranca a tíbia. O osso é grande para o prato de sobremesa, mas vó não se intimida e depositada nele o fêmur também. Depois o úmero, a bacia até o grande desfecho. Vó tira o estribo, o menor ossinho, mas antes que ela o coloque no prato irmã se corrige com um sorrisinho. Os ossos da galinha, claro. E tudo escuro.
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Recobro a minha lucidez e fico feliz de ver vó com o seu cálcio no mesmo refúgio de onde nunca saiu. Ao mesmo tempo não sei se me entristeço de ter perdido o ápice do surrealismo humano. Claro, só podiam ser os ossos da galinha recheada!
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Um beijo com azeitona inteira,
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Astácia
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ps: falei moroso no meio do texto, mas me arrependi. Moroso parece que tem pelotas de gordura roçando a garganta, caminhando para a boca e se espatifando no chão. Ai, ainda estou com asco! E asco, convenhamos, é bem mais bonito que moroso.

2 comentários:

Flávio A disse...

gostei bastante. principalmente do PS, que me fez achar que era um texto da marina, aliás, vocês escrevem parecido, e pq será que ela ainda não escreveu por aqui?

ana rita disse...

A Marina é chata e por isso não escrevo igual a ela.

Tomara que um dia ela dÊ o ar da graça