quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A prova de amor

Não esperava mais nada daquela quarta-feira à tarde.Quando fechava a porta do escritório só pensava em um bom banho e televisão. Ao abrir a porta do elevador e me deparar com meu marido, senti uma sensação estranha, como se algo estivesse errado. Pensei em lhe dar um beijo rapidamente, mas, antes que pudesse tomar qualquer atitude, ele se precipitou:

-Vim te buscar hoje porque preciso falar com você.

Perguntei se era tão urgente assim, ele disse que era.
Fomos até o carro. Ele olhou para mim e começou a falar com uma certa calma. Era fim de tarde, o vermelho e o dourado do crepúsculo opunham-se à sua face, dando-lhe um aspecto mais jovem, o que me manteve ligeiramente distraída por alguns segundos, até ouvir a palavra “divórcio”.

-Divórcio?! – Pensei. Tudo bem que há algum tempo as coisas não iam tão bem entre nós, mas aquela palavra soou forte demais pra mim. Cheguei a balbuciá-la num tom de questionamento, ele continuou:

-Sim Kátia, divórcio! Lúcia não agüenta mais essa situação, o que é bastante compreensível; todo mundo sabe que Marcelo é um tremendo de um galinha... onde já se viu um coroa daqueles metido a garotão? Sempre correu atrás de menininhas mais novas, dessas de 18, 19 anos, que vivem à procura de um otário rico.

Fui tomada por uma sensação de alívio. Não era a nós que ele se referia, e sim, à Lúcia, sua irmã. Contudo, para falar a verdade, eu já estava farta daquele assunto. Marcelo sempre aprontou, e Lúcia, como boa esposa submissa, dotada de todos os princípios vindos de uma família tradicional e da consciência de que dependia do marido, aceitava as atrocidades dele calada. Nunca aceitou nenhuma ajuda e, se desta vez havia aceito, é porque fora a gota d`água.

-E as crianças? – Perguntei.

-É justamente com elas que estou mais preocupado. Já me ofereci para que elas passem um tempo lá em casa, é provável que isso aconteça, Lúcia vai precisar.

Nós não tínhamos filhos. Ia ser uma situação um tanto quanto estranha para nós, constrangedora talvez, mas tanto eu quanto ele sabíamos que aquele esforço era irrelevante diante daquelas circunstâncias. Pedi para que ele ligasse o carro, pois estava cansada, queria ir para casa.
Permanecemos calados durante o percurso. Não havia mais o que dizer, era aquilo e acabou, eu apenas tinha que digerir a situação. Naquele dia eu estava pensativa, cansada, um pouco melancólica.

Paramos diante de um semáforo, numa rua qualquer. Notei que estávamos em um bairro pobre, devido ao aspecto dos transeuntes, que retornavam às suas casas após mais um dia de trabalho desgastante. Pensava no ar lento e taciturno que ofereciam. Havia um carro vermelho em nossa frente. Eu ia pronunciar algo, na intenção de quebrar aquele silêncio que já começava a me incomodar, quando vi Marcelo descer do carro da frente e dar os dois tiros. Sorri, mesmo que um tanto quanto chocada; sua astúcia e inteligência haviam me surpreendido. Rodolfo não teve tempo de se defender, foi pego de surpresa. Dois tiros certeiros no coração poram fim à sua vida. Desci do carro, enquanto Marcelo escondia a arma de volta na calça jeans. Corri em sua direção e o abracei.

-Onde está Lúcia? – Perguntei.

-Escondi o cadáver no armário.

-E as crianças?

-Já mandei para a casa da velha.

Continuei olhando fixamente em seus olhos, até que uma certa timidez me alcançasse, manifestando-se em um leve sorriso correspondido. Nossos lábios se tocaram. Foi o beijo mais longo que já havia recebido.

7 comentários:

L. L. disse...

um texto escrito há 3 anos atrás. lembro que acordei e a história já estava pronta na minha cabeça. foi só colocar no papel.

p.s.: esse não foi sonho não =p

ana rita disse...

Acho que o texto amadureceu bem durante o sono. Gostei bastante!Adorei o vermelho perpassando a história, no crepúsculo, na cor do carro e escondido no tiro.

Acho só que deparar não é verbo pronominal. E parabéns pela coragem, nunca consigo muito conjugar o verbo pôr.

pit disse...

é, não é pronominal não.

mas gente, o que deu em vocês que matam todo mundo, meu povo?
gostei, quisera eu matar personagens com o requinte de vocês.

mas senti falta de pistas que indicassem o final, sabe?
pistas daquelas que nos façam dizer: como eu não pensei nisso antes?!

ana rita disse...

também senti falta das pistas, talvez pudessem ser encaixadas nos parágrafos da discussão sobre o divórcio. Parece que nesse momento você esboçou alguma coisa, mas ficou solto demais que não chegou a gerar no final a tal sensação de
como eu não pensei nisso antes?!

Anônimo disse...

concordo que seria interessante criar algumas pistas e dar um clima de suspense. mas, a intenção desse texto foi justamente o contrário. eu tentei fazer o máximo pra o final ter um efeito de choque, de surpresa, como uma freada brusca. acho que fiz isso para poder deixar à mostra, de uma maneira mais eloqüente, as feridas implícitas na vida das personagens, feridas tão comuns numa sociedade hipócrita, opressora e doente como a nossa.

(ok, acho que me empolguei no discurso. rs. espero que tenha ficado mais claro, e obrigada pelas sugestões, são sempre bem-vindas).

ana rita disse...

a questão de pistas não é para criar suspense, mas sim para gerar o efeito das feridas implícitas. O implícito está escondido não inexistente. Quando falo que falta pistas imagino em coisas que confirmem que o problema sempre esteve ali, mas eu não conseguia ver. É bem complicado isso, mas acho que tá aí a dificuldade de escrever sobre o implícito ou mais ainda, mostrar a existência dele.

Anônimo disse...

foi o que eu tenteiu dizer também, rita.
;)

acho que deixar as tais pistas dá mais impacto, deixa mais chocante ainda porque sempre esteve lá e a gente não percebeu.
e isso reforçaria a sua idéia de mostrar algo podre da sociedade. a gente não nota porque é muito comum, está muito perto de nós.
a morte quebra essa banalização do "erro".
(não sei se estou sendo clara)

mas é muito difícil.
eu não sei se seria capaz.