quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Back from the Great War

Na tarde passada, um cadáver chegou para o chá.

Partira há muito para a Grande Guerra e desde então não ouvíamos falar nele. Era o melhor vizinho do bairro, o mais exemplar, cavalheiro, educado. Gostava de agradar as crianças dando-lhes doces, e agradava as mulheres dando-lhes rosas.

Décadas após a Grande Guerra, quando a mansão do velho Kenneth - o vizinho - já era uma creche para crianças pouco educadas, eu saí para cuidar do jardim e achar minhocas na areia, que eu provava ocasionalmente e achava boa. Nada como colheradas generosas e obscenas daquela areia provocante. Aí, encontrei Kenneth lá no fundo. Cinza, seco, com uns poucos tufos de cabelo frágil no crânio sem pele. Estranhamente bonito. Kenneth usava seu terno desbotado e recendendo a vinagre, o mesmo terno que ele usava para passear e o mesmo que ele usara no dia em que fora à guerra.

Kenneth!, exclamei feliz. Nunca imaginaria encontrá-lo ali. Escondendo-se das belas donzelas, seu safado? Ah, venha cá me dar um abraço!, e abracei Kenneth. Seus ossos sob o paletó estalaram afoitamente. Kenneth, o que houve com suas pernas? Onde estão? Deixou-as lá, para uma vida mais prática? Quanta genialidade!

Kenneth exalava genialidade enquanto eu o levava até minha casa velha e vazia. Enquanto todos fraquejavam contra o frio, eu pus a cama na varanda. Eu pus Kenneth sobre a cadeira, sustentando-o com um graveto que perfurou seu olho para que ele não caísse. E aí, Kenneth, chá ou café? Manejei o bule de café até a xícara mais próxima de Kenneth, mas estava pesado, eu estava sem força, e o café caiu nos dedos ressequidos do velho, e sua mão derreteu. Desculpe, Kenneth. Então, cara, o que você conta? Como foi lá? Kenneth? Por que você está tão quieto? Kenneth estava quieto, absurdamente. Tudo bem, vou buscar uns biscoitos, não saia daí!

Mas Kenneth saiu. Voltando, não o encontrei lá.

(baseado no vídeo Salad Fingers 7, por David Firth)

5 comentários:

Anônimo disse...

Bicho, estou esperando ansiosamente a segunda parte.

pit disse...

acho que eu deveria assistir esse vídeo.

sabe, se você não se ofende com best sellers, quando ele é o melhor vizinho, me lembro do pai d'A menina que roubava livros.

Flávio A disse...

Bicho, não tem segunda parte. é bizarro assim mesmo.

não, pit, não me ofendo tanto, e acho que todos poderiam ver um pouco de salad fingers; nossas vidas seriam melhores e sem sentido.

ana rita disse...

salad fingers é bem divertido, mas às vezes asqueroso. Talvez devesse tirar o mas, afinal o asco nem sempre é tão distante da diversão.

Gostei bastante do texto, no momento em que o corpo entra na casa então! Gostei do jeito que você tornou o assustador e grotesco em um terno quase patético, queria saber fazer isso!
Agora uma coisa, seu jeito de escrita, não que isso seja ruim, me parece bem estrangeiro, como alguém que fala de longe. Bom, não sei se deu para entender direito.

L. L. disse...

É verdade, parece estrangeiro mesmo. E isso não é ruim. O fato é que é bem gostoso de ler. Esse texto em especial me lembrou muito um livro do Mark Haddon, "O estranho caso do cachorro morto", que, aliás, é um ótimo livro. Não tanto pelo enredo, mas pelo jeito de escrever mesmo.