sexta-feira, 4 de setembro de 2009

eu estive aqui

aos quarenta ela ainda pegava o trem, sobretudo quando se sentia sozinha. era mais confortável a solitude na multidão, passando pelos túneis e ouvindo a voz plástica ditar as paradas. nos táxis a solidão era desoladora porque a segunda pessoa sempre achava dever quebrar o silêncio, falar do banal, ligar o som ou sei lá o que. era também por isso que aos quarenta ainda pegava o trem, além das razões ambientais e financeiras.
aos quarenta ela preferia os trens aos ônibus, porque evitavam o tráfico e não eram tão óbvios. na cidade dela, tinha que caminhar mais para entrar e depois para saltar dos vagões. é incrível como a gente pensa melhor enquanto caminha. ela não tinha medo da caminhada nem da solidão, propriamente.
acontece que aos quarenta ela ainda tinha um medo incontrolável e tinha aquela aflição e a vontade de se isolar.ela ainda tinha as mesmas lágrimas de vinte anos antes escondidas atrás dos olhos. talvez por isso sempre tentasse fugir pelos mesmos trilho, ainda que soubesse no que aquilo tudo ia dar.
mas eis que aos quarenta se sentia mais preparada do que nunca para saltar.
durante quarenta anos a existência dela dela tinha causado constrangimento e pesar nos outros e ainda hoje ela se sentia alvo da piedade alheia.
hoje, aos quarenta, entre a estação central e a galeria ela tomou a decisão, sem medo nem saudosismo.sem nada demais nem de menos.
aquele seria o último vagão a ouvir seus pensamentos contraditórios. sacou da bolsa o batom carmim, e antes de descer na 106 sul, escreveu no vidro: 'eu estive aqui'.
assim mesmo, sem identidade como qualquer um que se senta em um vagão do metrô saindo da central para a periferia,
'eu estive aqui'.

3 comentários:

ana rita disse...

O final clichê e quase previsível, mas o começo e o meio são deliciosos.

Unknown disse...

Vou com a Ana e não vou ao mesmo tempo. As duas últimas linhas antes do eu estive aqui dão um fôlego interessante para algo que estava indo ficar normal. O bonequinho aplaude sentado.

I.P. Araújo disse...

só não gostei do final, mas tá muito bem escrito. talvez se ela tivesse tomado uma decisão diferente... a última frase foi muito boa.